“Estava numa situação limite e o trabalho sexual foi a minha saída”

A mulher da vida, o “chulo”, a prostituição. O trabalho sexual existe na nossa sociedade, apesar de o tornarmos, muitas vezes, invisível. Envolvendo pessoas diferentes e motivos variados, é difícil traçar-lhe um retrato. Assim, os trabalhadores unem-se, numa luta demorada, para pôr fim aos preconceitos. Como é que a lei pode ajudar estas pessoas?

“O que me levou a fazer trabalho sexual foi a procura de mais independência económica e ter um horário”, revela Maria, uma das fundadoras do Movimento dxs Trabalhadorxs do Sexo (MTS). A mulher trabalhava “em hotelaria”, tinha um filho pequeno e “não podia estar a sair à meia noite, uma da manhã” e ter “problemas com amas”. Maria olha para a sua atividade como “um trabalho”, porque é dele que tem os seus rendimentos, paga as suas contas e cria o seu filho.

Sérgio – também fundador do MTS – não faz trabalho sexual atualmente, mas já fez “em vários momentos” da sua vida, embora nunca “profissionalmente, no sentido de decidir agora é este trabalho que vou fazer”. Refere que recorreu a trabalho sexual como “recurso financeiro em desespero” quando “precisava de dinheiro com muita rapidez para pagar dividas, pagar uma renda de casa ou em situações em que estava emigrado sem trabalho, sem dinheiro e à procura de subsistência”.

Contudo, recusa “todo um discurso de que muitas pessoas são empurradas para o trabalho sexual” apesar de ”isso ser verdade”, no seu caso, “tinha outras opções possíveis”. O trabalho sexual foi uma “solução” que lhe permitia “aceder a valores que não conseguia através de um trabalho formal”.  Quando esteve emigrado numa ilha no mediterrâneo, trabalhou sem ser pago vários meses, uma “situação limite e o trabalho sexual foi a saída”. Permitiu-lhe a saída da ilha para se instalar em Barcelona, explica Sérgio.

O MTS surgiu em 2018 pela iniciativa de Maria, Sérgio e “mais algumas pessoas” e constitui a primeira organização “composta exclusivamente por pessoas que fazem ou que fizeram trabalho sexual”. Algo que, para Sérgio “faz toda a diferença” porque independentemente das pessoas e organizações aliadas, a causa ganha é a “dar voz às pessoas em causa”, vinca.

A decisão de criar este movimento ganhou ainda mais importância em 2020, quando a pandemia se revelou um “período extremamente complicado para a generalidade das pessoas que fazem trabalho sexual com muitas situações de emergência social” e o MTS conseguiu ajudar porque já “estava no terreno, já tínhamos contactos”, ressalva Sérgio.

“Não há duas pessoas iguais”

Quando se fala em trabalho sexual ou da sua faceta mais conhecida – a prostituição –  é frequente ouvir-se a perguntar os motivos para entrar na atividade e Sérgio não tem dúvidas de que “as motivações das pessoas que fazem trabalho sexual são de vários universos”.

Vão desde “pessoas que foram excluídas do mercado de trabalho” a “pessoas que estiveram presas e não arranjam trabalho” e, nessas circunstâncias pode ser um “recurso”, mas também “há pessoas que escolhem fazer trabalho sexual porque gostam” e há mesmo quem faça trabalho sexual e tenha “empregos reconhecidos ao mesmo tempo”. Todas estas realidades levam à conclusão de que “não há duas pessoas iguais”.

Além disso, alerta para o facto de “a maior parte dos trabalhadores do sexo em Portugal trabalhar por conta própria” – algo que é uma das possibilidades que os “trabalhos reconhecidos” nem sempre permitem – o que “desfaz a ideia do proxenetismo como regra”, defende.  Podem, ainda, “recorrer a serviços de terceiros quando alugam quarto ou utilizam bar de alterne”, visto que existem também “muitos modelos diferentes de exercício da profissão, em apartamento, na rua, estabelecimentos”, explica um dos fundadores do MTS.

Conceição Mendes é assistente social na Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) “O Ninho”, uma associação que há 55 anos ajuda “mulheres prostituídas” – porque “há alguém que as prostituí e antes de serem prostituídas são mulheres” – que já estão na fase de reinserção, mas vai também “ter com mulheres aos sítios onde elas estão, na rua, nas casas fechadas”.

Para a assistente social,  uma das causas para a entrada na prostituição é a miséria, nomeadamente das mulheres que vêm de países como o Brasil ou a Nigéria em que “a miséria nos seus países é tanta que vêm para ajudar a família”, mas em Portugal as histórias aliam-se a “toda uma série de histórias de vida completamente violentas”, pessoas que cresceram em famílias que não tinham “ninguém para tomar conta delas, que  deixaram de ir à escola, tiveram de trabalhar  logo desde pequenas”, e há mesmo o caso de uma mulher que foi violada pelo avô entre os 3 e os 12 anos”. 

Apesar de considerar que não se deve “culpabilizar as famílias”, encara com preocupação o facto de haver crianças com menos de 10 anos a ver pornografia, que “crescem a achar que aquelas performances que aparecem é o normal” e tratar as mulheres  “com violência”, achando que “é o que elas gostam”, lamenta. Além disso, alerta para a existência de anúncios em que é dito “com estas leggins modeladoras todos os homens vão olhar para as tuas nádegas e desejá-las”. Conta que a sua filha quando viu o anúncio lhe disse que se tratava de “formatação social”, em que “somos condicionadas para percecionar a aprovação dos homens como diretamente relacionadas ao nosso valor pessoal e muito provavelmente quem escreveu esse anúncio até foi um homem”. Neste cenário, o Ninho “vai frequentemente a escolas falar aos jovens sobre valores para o futuro”, nomeadamente o tipo de sociedade que queremos”.

Ilustração de Ana Carolina Silva

Conceição conta que “90% das mulheres que passam pela associação conseguem organizar a sua vida e trabalham muito, muitas vezes fazem mesmo trabalhos duros”. Neste sentido, o Ninho tem uma parceria com a Câmara Municipal de Lisboa – a área de atuação da instituição – que permite o trabalho como jardineiras para as mulheres acolhidas pela instituição.

Nos 40 anos que já tem no Ninho nunca conheceu nenhuma mulher que “goste de se prostituir”, conta a assistente. Fernando Bessa Ribeiro, investigador da área do trabalho sexual, é perentório ao abordar a sua experiência em trabalho de campo: “encontramos de tudo, pessoas que gostam, pessoas que não gostam e pessoas que se tivessem alternativas viáveis fora do campo da prostituição certamente não estariam na prostituição”.

O investigador aponta para a preocupação demonstrada pelos defensores do abolicionismo ao pretenderem “resgatar as pessoas desse trabalho” e refere que “o mesmo não fazem para outras profissões em que as pessoas não fazem o que gostam”. Neste sentido, a sua investigação destaca que de “uma forma geral [os trabalhadores sexuais] têm uma perceção sobre o seu trabalho mais positiva do que a maioria dos trabalhadores têm em relação aos seus trabalhos” e dá o exemplo de uma mulher brasileira com quem conversou que dizia que “tinha vindo para prostituição não como uma escolha sonhada “, mas porque “estava numa situação económica difícil , precisava de dinheiro em quantidade apreciável”. Algo que o emprego como operadora têxtil não lhe permitia juntar em pouco tempo. Além disso, esta trabalhadora contou que “com alguns clientes até é uma relação sexualmente satisfatória”.

Diogo Mendes, do Projeto Aquém e Além Margens, semelhante ao MTS e ao Ninho, concorda com o investigador: “existe de tudo um pouco”. “Há pessoas que preferiam outra vida e até criam uma certa aversão aos parceiros sexuais”, exemplifica. A grande vantagem deste ramo, volta a ser dito, é “financeira, por não estar legalizado nem regulamentado, não descontam”. O psicólogo concorda que “ninguém quer trabalho sexual como primeira opção”, mas há quem acabe por gostar. Para os emigrantes trabalhadores sexuais, por exemplo, Diogo Mendes acredita que “já que vão ser discriminados e vão, ao menos ficam onde têm proveito”.

Ilustração de Ana Carolina Silva

O professor Fernando Bessa Ribeiro defende: “o retrato não pode ser pintado a preto e branco, é muito colorido”. “A ideia de que, por exemplo, a prostituição é apenas para jovens não é verdade.” São pessoas diversas, “não estão apenas mulheres a prestar serviços sexuais a homens, estão também mulheres a prestar a mulheres, homens a outros homens, homens a mulheres, pessoas trans a homens e a mulheres“. A unificar, “infelizmente”, comenta o professor, “formas violentas de estigmatização e expressões de violência simbólica muito significativas”.

“Disse que com a sua vagina, fazia o que bem lhe apetece”

“Eu às vezes ligo à Maria e ela está a gritar com os homens”, começa Sérgio. A discussão da legalização liga-se a essa capacidade de agência dos trabalhadores. Para Maria, a ideia é de que as mulheres deste ramo “são coitadas”. No entanto, a maioria dos homens “entende que o poder está na mão de quem exerce o trabalho sexual”. Sérgio concorda com a colega de profissão. “Nós prestamos um serviço confidencial e aí, há a troca pelo respeito pelos parâmetros acordados primeiro.” O horário, o que é feito e o tempo, “tudo fora desse acordo verbal é abuso”, assenta Maria. Claro que existe abuso, confirma, principalmente “para as trabalhadoras mais frágeis, as mães solteiras, as que consomem drogas”. “Há situações de emergência social”, completa Sérgio, onde a margem de agência diminui, mas aí as trabalhadoras “deviam ser mais protegidas, são mais expostas”. O ex-trabalhador reflete “não é a mesma coisa trabalhar num apartamento e atrás de uma câmara e trabalhar numa rua de Lisboa com consumo de drogas.”

No seu trabalho de campo, o investigador Fernando Bessa Ribeiro conheceu “muitas histórias de vida complicadas”. Isto por serem pessoas maioritariamente pobres, não por trabalharem no ramo do sexo. “Mas tiveram liberdade de escolher”. O professor defende ainda que “a esmagadora maioria destas pessoas é pobre mas nem todas as pessoas pobres são prostitutas”. Isso mostra que “as estruturas não são determinantes a forçar as pessoas a determinada escolha, há uma margem de escolha, pequena mas existe”. Defendendo a liberdade de escolha, recorda uma história que o marcou. Uma trabalhadora do sexo, em Chaves, “disse que com a sua vagina, fazia o que bem lhe apetece”. “Mostra que não obstante a sua escolha ter sido condicionada pelas estruturas económicas, ela tem capacidade de agência”, termina o professor.

“Se sairmos da prostituição e formos para as várias formas de trabalho sexual, como através da webcam, pela internet”, completa Sérgio,  “fica mais claro que cada um mostra o que quer e não há nada que o cliente possa fazer”. Aplica-se o mesmo nas relações físicas, “mas ninguém se aguenta no trabalho sexual se não estiverem no controlo da situação”.

“Tudo está feito para não procurar a polícia quando somos vítimas de crimes”

Para o professor e investigador da Universidade do Minho, o acórdão do tribunal constitucional –  que afirma que “a decisão de uma pessoa se prostituir pode constituir uma expressão plena da sua liberdade sexual” e que não é constitucional punir quem lucra com a prostituição de outrem- “ não merece oposição”. Isto porque “é favorável a uma interpretação assente na capacidade de agência, do livre arbítrio dos atores sociais” que atuam neste setor, justifica.

No que toca à legislação atualmente em vigor, Sérgio esclarece que apesar de haver “a ideia comum”- mesmo na classe política- “que a prostituição  está legalizada em Portugal e que aquilo que é criminalizado é o proxenetismo ou lucrar com o trabalho sexual de terceiros”, é uma ideia errada. “Há uma contradição entre a lei e a prática, porque as regras destinadas a combater o proxenetismo, na verdade excluem as pessoas trabalhadoras do sexo”, lamenta. Esta exclusão e perseguição acontece porque apesar “de não poder ir preso, tudo o que seja relações comerciais fora do trabalho sexual é criminalizado”, isto inclui “colocar anúncios, recorrer a uma agência , alugar um quarto ou um apartamento. Tenho de chegar aos clientes de alguma maneira”, relembra o ex-trabalhador.

Ilustração de Ana Carolina Silva

Como está a lei quem der boleia a colegas ou “duas ou três pessoas que vivam juntas no mesmo apartamento pode ser criminalizado e a pessoa que tem o apartamento em seu nome pode ser criminalizada como proxeneta porque deu o nome”, continua Sérgio. Mesmo os “companheiros afetivos podem ser criminalizados porque vivem em união de facto e havendo uma economia comum podem ser acusados de proxenetismo”. O mesmo facto é referido por Fernando Bessa Ribeiro para quem “é possível fazer uma interpretação que penaliza do ponto de vista legal todos aqueles que possam tirar proveito dos benefícios das pessoas que prestam serviços sexuais” e, por isso, defende que devem ser feitas “alterações significativas” na legislação.

A atual legislação tem grandes impactos nos trabalhadores sexuais, nomeadamente em “alugar uma casa, abrir contas bancárias”, dada a “forte resistência dos bancos a abrir uma conta bancária a uma pessoa que é reconhecida como trabalhadora do sexo”. Desta forma, “quem é realmente afetado é a parte fraca, não é a entidade patronal no caso das pessoas que trabalham para terceiros”, denuncia Sérgio.

Outro dos impactos é a impossibilidade de “recorrer à polícia, porque vai partir do princípio que é uma situação de proxenetismo”, mesmo que a pessoa diga que trabalha por conta própria. O ex-trabalhador Sérgio vai mais longe e considera que “tudo está feito para não procurar a polícia quando somos vítimas de crimes”, assim como os serviços de saúde e “para não ter acesso a uma série de direitos básicos como um seguro”.  Algo que durante o período da pandemia se verificou com a exclusão “dos apoios e compensações estatais” criados nesse tempo para a restante sociedade. Além disso, na sua opinião, trata-se de uma “dose de hipocrisia muito grande”, visto que “se tolera a existência até de situações de proxenetismo porque se sabe que se fecharem aquelas casas as pessoas vão trabalhar na rua em condições mais precárias e vai haver mais violência”, denúncia.

Para Diogo Mendes, a maior dificuldade do trabalhador sexual, além das doenças, são “as tentativas de abuso sexual, que sabemos de relatos”. O projeto aconselha a apresentar queixa “mas é uma posição muito ingrata”, “por não ser um trabalho legalizado”. Das “poucas pessoas que soubemos que apresentaram queixa”, receberam “comentários desagradáveis” e pouca ajuda. Na sua visão e do projeto, “cada vez faz menos sentido não legalizar”. “Sendo legal é regulamentado e as pessoas estão seguras, o Estado beneficia dessa profissão e é uma vitória para ambas as partes”.

A partir da sua atuação, o projeto conclui que a legalização facilita a existência desta profissão. “Uma pessoa destas que sofra alguma violação tem os pés, braços e mãos atadas”, defende. Mesmo que muitos serviços sejam gravados para proteção do trabalhador, “não vale de nada”, diz Diogo Mendes, “o serviço é crime”. Até a questão do consumo de drogas, uma realidade de mão dada com o trabalho sexual, Diogo acredita que resolveria. “Há muitos relatos de pessoas que têm de ir a esses ambientes para conseguir clientes”. Defende ainda que as pessoas estrangeiras, trabalhadoras em grande número, sofrem, com a criminalização “uma discriminação dupla”.

O MTS não defende a legalização da prostituição, uma vez que  “em termos formais a prostituição é legal”, por isso, o movimento defende antes um “processo de descriminalização” que elimine “todas as barreiras e discriminações que existem contra as pessoas que têm estas ocupações” em que se incluí as várias formas de trabalho sexual, não apenas a prostituição. Para tal, seria então necessário descriminalizar também “as formas de trabalho das pessoas que fazem trabalho sexual” e permitir o “trabalho em conjunto com os outros colegas no apartamento”, sugere Sérgio

Por fim, o MTS pretende também a “descriminalização do proxenetismo, porque na perspetiva do movimento descriminalizar “implica reconhecer o trabalho sexual como trabalho” e se no mundo de trabalho se pode “trabalhar para terceiros”, não faz sentido não se poder na prostituição, por isso, o proxenetismo deve deixar de ser crime”, argumenta.

O investigador do ICS concorda e alerta para o facto de Portugal ser uma sociedade capitalista na qual existem “relações de trabalho dependentes, em que alguém disponibiliza um trabalho e essa pessoa aceita trabalhar para um determinado salário”, desta forma na perspetiva do docente ”parece haver uma lógica que justifique ou que permite que possam existir relações laborais no contexto de prestação de serviços sexuais”.

Relativamente à forma como as pessoas que prestam serviços sexuais se devem organizar, Fernando Bessa Ribeiro olha com bons olhos para a formação de “cooperativas de trabalho” em que “3 ou 4 mulheres se associam e alugam um apartamento”. Além disso, o professor defende a organização em sindicatos “para regular e defender o trabalho na relação com o capital”, bem como a promoção do associativismo para representar quem faz trabalho sexual junto “do estado, dos deputados, dos partidos” para que possam também ser ouvidos “antes de produzir legislação”.

O Ninho recusa o termo trabalho sexual porque contribui para a “banalização de uma situação em que é legitimo um homem comprar uma outra pessoa”-  Conceição Mendes afirma que “querer colocar as mulheres numas casas” é uma “violência, é querer transformar o estado num estado proxeneta e querer legalizar o proxenetismo organizado”. Na sua perspetiva, isso poderá abrir caminho para que “os ditos empresários do sexo possam à vontade traficar mulheres, abrir bordéis e lucrar com a exploração  do corpo de outrem”.  Assim, a assistente social alerta para o facto de os “traficantes de mulheres ou meninas” não procurarem países onde a exploração da prostituição ainda é criminalizada. Conceição Mendes relembra que Portugal “ratificou várias convenções internacionais em que é contra a prostituição” e por esse facto não tem dúvidas de que “ou mudam isso tudo ou então não se pode fazer uma coisa que é completamente ilegal” – “transformar uma violência num trabalho como outro qualquer”, vinca.

No seu trabalho de campo, Fernando Ribeiro afirma que os dados mostram que “as pessoas têm capacidade de agência” o que implica o “uso de preservativo de forma a que não existam práticas sexuais inseguras, recusar a prestação de determinados serviços aos clientes ou mesmo a recusa do cliente”.

Desta forma, para o professor não há duvidas de que “a ideia de que há uma relação de poder absolutamente desigual entre o cliente que paga e a mulher presta o serviço não tem sustentação etnográfica” e ”não é aceitável decretar autoritariamente que qualquer forma de prostituição é uma forma forçada”, conclui.  Por este motivo, acredita que a posição pró-direitos é a que “melhor responde às necessidades, expectativas e interesses” de quem faz trabalho sexual  e confere “mais liberdade”,  nomeadamente  a “liberdade de poder decidir por si próprio”.

A assistente social do Ninho argumenta, por outro lado, que mesmo “que queira ser escravizada o meu país não o permite e protege-me”, por isso na sua visão ao legalizar não se está a “pensar na autodeterminação da mulher e na liberdade”, porque as pessoas estão-se a “autodestruir”, rejeitando a ideia de que a prostituição é apenas ter sexo com estranhos e não deixa marcas. “Deixa e são enormes”, garante. Uma delas passa pela incapacidade de terem relacionamentos depois de deixarem esta atividade.

“Todas as pessoas têm direito à saúde”

A saúde é uma das dificuldades da área sexual. Nela, a fonte de rendimento é o corpo. Diogo Mendes sublinha “se alguém tiver uma infeção, complica”. Para sobreviver, “há gente que ignora os tratamentos e põe em perigo a sua saúde e a dos outros”.

Focada nessa “dificuldade de acesso à saúde e material de contraceção” que os trabalhadores sexuais sentem, surgiu o projeto “Aquém e Além Margens”. Diogo Mendes, um dos psicólogos clínicos, explica que fazem, na sua sede, “rastreios a DST’s (HIV, Hepatite e Sífilis) gratuitos”. Situados no Algarve, essa é a sua área de atuação e a maior dificuldade não é monetária. “Somos financiados pela DGS e muitas associações nos dão material de graça.” Ao não ser um trabalho reconhecido, “é difícil chegar às pessoas”.

 “Hoje já temos uma rede com muitas pessoas que querem os nossos serviços” e vão a sites online oferecer ajuda, revela o profissional de sáude. “Não que seja a coisa mais agradável”, mas além do passa a palavra, é a única forma de alcançar o maior número de trabalhadores. Uma ou duas vezes por semana, marcam com “cerca de 15 trabalhadores”, fazem rastreios às quatro infeções, entregam material contracetivo e ajudam com apoio psicossocial.

Ilustração de Ana Carolina Silva

Por sua vez, Conceição Mendes do Ninho considera que a ideia de que a legalização vai ajudar em termos de saúde é uma “falácia”. “Todas as pessoas têm direito à saúde”, mesmo estrangeiras sem documentos e as portuguesas que se prostituem “não pagam taxas moderadoras”. Para ela, outra questão importante é o consentimento. Há casos de mulheres que lhe dizem que “na prostituição são pagas para serem violadas” e há mulheres que aceitam ir para o quarto com clientes, mas que só fazem “porque precisam de dinheiro”. Há relatos onde não usam preservativo para fazer a vontade ao cliente. A questão é que “quanto mais parceiros, maior risco de infeção”, destaca Diogo Mendes. O Aquém e Além Margens fornece, para isso, preservativos femininos e masculinos. “Tentamos manter as pessoas informadas para que possam tomar decisões conscientes”, conta o psicólogo.  “Que possam pelo menos ter noção dos riscos, opções que têm e cuidados que devem ter”.

“Estigma da puta vem existindo e traz o preconceito”

O estigma do trabalho sexual “vem da estigmatização das mulheres, em primeiro lugar”, na visão de Sérgio. Maria concorda que a imagem do trabalho sexual é “a mulher da má vida” e “não pensam nos homens e pessoas trans”. É esta ignorância em relação ao mundo do trabalho sexual que Sérgio conta, apontando como causa dos preconceitos. “Há invisibilidade mas é particular, porque as prostitutas de rua, que é o mais visível, não são invisíveis. Na nossa cidade vamos à rua e vemos as pessoas a exercer esse trabalho.” Enquanto na luta LGBTQIA+, exemplifica, as pessoas, exceto as transsexuais, podem fazer “as suas vidas como se fossem héteros”, os trabalhadores do sexo não. “É como se não existíssemos”.

O investigador Fernando Bessa Ribeiro exemplifica que “todos os anos o número de jornalistas que morre no trabalho é maior, mas não é por isso que vão proibir a profissão”. Defende que “que é preciso deixar a moralidade para cada um e ter o direito de poder agir de acordo com os seus valores, sem impor”. Neste “trabalho sem fim”, o professor defende que se vá “garantindo pequenos avanços.”

O “estigma da puta vem existindo e traz o preconceito”, completa Maria e Sérgio acredita que isso é “fruto de uma sociedade dominada pelos homens, ainda hoje, pelo menos na questão das mentalidades”. Ao contrário do que se pensa, os clientes não colocam os trabalhadores “nesse lugar de marginalidade”, como lhe chama Sérgio. “Na pandemia viu-se clientes a levar comida, a pagar contas das trabalhadoras.” Mantêm amizades e ajudam em casos de doença, “até durante anos”, conta Maria. “Quem conhece esta realidade acaba por ver que estas pessoas são mães, têm vida, não têm problema com o que estão a exercer, o resto da sociedade não”.

Para Sérgio, esta “luta longa” passa pela descriminalização. Atualmente, as redes sociais são palco de atividade sexual, o que o homem aponta como positivo. “Fico espantado com a quantidade de pessoas que estão em sites (sexuais), nem falando das que estão comercialmente”, conclui, “há uma vivência mais aberta do sexo que a internet possibilita”. É desta forma que “se rompem muros”.

Gabriela Ferreira e Rui Vieira Cunha

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